sábado, 25 de setembro de 2010

Coming Out - A Carta

Sinto que chegou a altura. Terminei uma época complicada na faculdade, mas começo algo novo agora. Chegou a altura de ser aquilo porque sempre sonhei e lutei ao longo dos últimos anos. Chegou a altura de ser Eu. E isso exige esta carta.

Gosto muito de ti. Começo por aí porque é importante. Sei que a minha distância te entristece e, sabes, também me dói. Porque sempre fizeram parte de nós esses desabafos,mas espero que acabes por me compreender. Estes anos trouxeram-me questões que tive de remoer e descortinar sozinha antes de conseguir o desabafo que agora tento fazer. Espero que o oiças (ou leias), perdoes o seu atraso e compreendas. Mas chegou a altura de ser verdadeira e apagar esta lacuna. Porque o mereces. Porque o merecemos.

Quando olho para trás, já me é difícil encontrar o real inicio para o que quero contar. Começo, então, a partir de onde, também eu, comecei por me ouvir com mais atenção.

A faculdade angustiava-me, sentia-me só e tinha sérias dificuldades em acreditar que conseguiria ultrapassar a barreira que criara e me impedia de aceitar a aproximação de alguém. Até que alguém surgiu. Olhou-me nos olhos, quando não os conseguia levantar, e sorriu-me tanto. Contagiou-me. Acabei por ceder à sua alegria e aventurar-me fora do beco onde me escondia. Mostrou-me o que perdia; as gentes, outras, que me sorriam e chamavam, os sítios que esperavam por mim e o futuro, desejoso de ser escrito, brilhante, possível e até feliz. O meu peito pulsou de novo e a vida recomeçou a fazer sentido.

Para minha surpresa, tinha agora alguém para me guiar, alguém que me ajudava a encontrar o caminho que eu precisava de percorrer e que me acompanhava sempre, lado a lado, para que não receasse. E, aos poucos, perdi muitos dos medos que julgava que me angustiariam a vida inteira. Fui feliz, de novo. Estava feliz, confortável e, por fim, em paz. E era assim que me sentia a seu lado. Bem. E, sem o esperar, apaixonara-me.

Não o soube logo, fugia inconscientemente desse facto e ignorava-me. Mas chegou um ponto em que, pela evidência da emoção, do conforto, dos gestos e das palavras que deixava escapar, não pude mais fugir do confronto comigo própria. Alguém se apaixonara por mim e merecia, merecíamos, a paz de espírito para viver esta nova partilha com a honestidade e naturalidade com que começara. Mas não o quis aceitar. Sabia a dura caminhada que teria de percorrer caso a aceitasse. Sabia exactamente o que pensariam de mim, as perguntas e acusações que se fariam e tive medo de vacilar, não sabia se teria força. Sabia que diriam que era apenas por ser moda. Também pensei que seria só uma fase, também julguei que estava a ser influenciada, também acreditei que estaria apenas a fugir da minha solidão. Senti o medo de ser descoberta, o peso da mentira e do segredo, a vergonha, a dúvida entre o certo e o errado, o normal e o anormal. Mas o que mais me incomodava era o facto de não me incomodar. Apesar de todo o tumulto que se passava dentro de mim, quando estava a seu lado, tudo serenava, tudo fazia sentido e tudo era certo. Este amor trazia-me um conforto que nunca esperara nem experienciara antes. Mas não conseguia compreender como seria possível.

Quis fugir. A certa altura, a angústia do segredo e dos contínuos incentivos familiares para arranjar um namorado tornou-se intolerável e quis desistir. Havia de encontrar um rapaz que gostasse de mim, que me casasse e engravidasse, iria esquecer tudo isto, seria apenas um sonho de que me esqueceria depressa. E disse-lhe: acabou. E bastou pronunciar esta palavra para que, em vez do alívio que esperava sentir, uma dor profunda tomasse conta de mim com tal violência que toda a alegria que tinha ganho, toda a esperança num futuro feliz, todos os sonhos, todas as motivações, tudo caísse por terra. Fui invadida por uma tristeza de morte antecipada. E foi preciso perder o que tinha para lhe dar valor. Estava a fugir de algo que me fazia tão bem, de alguém que cuidava de mim com o carinho e respeito que eu merecia, da felicidade que já tantas vezes sentira a seu lado, estava a fugir de tudo isto apenas pelo medo de lutar. Não poderia, aliás, ter a certeza de que uma paixão destas não se repetiria no futuro e a ideia de forçar um amor para cumprir expectativas era insuportável. Não demorei a pedir desculpa e a querer recuperar o seu amor. E, como era grande e verdadeiro, aceitou-me de volta.

Aceitei, por fim, a natureza desta relação. Mas foi necessário vasculhar as memórias e vivências para me compreender inteiramente. A tendência humana para classificar e rotular obrigou-me a uma revisão pessoal de mim mesma. Aos poucos, as memórias surgiram. Todas. Regressavam finalmente a mim para que as compreendesse, apesar do esforço ao longo dos anos para as ignorar. Ignorei a indiferença de sempre pelos namoricos e engates masculinos. Ignorei o facto das únicas relações amorosas que tive terem em comum a distância e o número diminuto de vezes que estávamos juntos. Ignorei a certeza de que não me queria envolver intimamente com nenhum deles. Ignorei o facto de, assim que a possibilidade de um contacto mais próximo surgia, uma angústia e incomodo inexplicável tomarem conta de mim e me afastarem brutalmente daquela relação. Sabia que era diferente e procurara uma justificação médica, uma fobia, um complexo incurável, uma assexualidade pouco descrita onde me pudesse esconder de tantas outras coisas que insistia em ignorar. Ignorei aquela vontade súbita, aos oito, nove anos, de beijar a rapariga que conversava comigo. Ignorei o nervoso miudinho que tinha em antecipação por encontros com algumas amigas especiais. Ignorei o entusiasmo por elas e o medo que julgassem que fosse demasiado. Ignorei até a minha escrita, que tão mais facilmente descrevia um amor por uma mulher. Ignorei tanto e ainda hoje, de vez em quando, afloram novas memórias que reafirmam a certeza. Não é uma fase. Não é influência. Faz parte de mim.

Mas não chegava compreendê-lo em mim, faltava compreender onde me encaixava no mundo, nos outros. Decidimos contar da nossa relação aos amigos mais próximos, o segredo pesava demasiado e precisávamos de um sorriso de apoio. O medo de não o receber, de ser olhada de lado, criticada e, por fim, ignorada e espezinhada era doloroso e brutal. Bem sabemos o quão perigoso pode ser o preconceito. Mas era necessário sair deste esconderijo. Contei a uma, duas pessoas. Sorriram e abraçaram. Mais duas ou três. Ficaram contentes por ter encontrado alguém que me fazia feliz, merecia-o. Apesar da preocupação natural com o caminho que ainda precisava de percorrer, só recebi braços abertos. Ganhei força e coragem. Alarguei o grupo de amigos com quem desabafar. A certa altura todos os amigos próximos, desde os mais antigos aos mais recentes, conheciam este pedaço de mim, sorriam de volta e davam-me todo o seu apoio. Queriam-me feliz. E agora faltava muito pouco para o ser em pleno.

Apesar do apoio e carinho de todos, precisei de encontrar gente como eu, que tivesse passado pelo mesmo, que soubesse exactamente o que sentia. O facto de sabermos que não somos os únicos é muito reconfortante e algumas palavras poderiam ajudar-me a encontrar o meu espaço e o meu direito no meio dos outros. Encontrei raparigas, miúdas e mulheres, através das suas palavras. Li com atenção e curiosidade o que publicavam nos seus blogs pessoais não só sobre a temática mas sobre si mesmas. Foi inspirador. Mulheres como todas as outras, que trabalham algures atrás de uma secretária, num laboratório ou numa escola, que partilham a casa e a vida com alguém há mais de 13 anos, e planeiam uma gravidez de uma filha que acaba de fazer três anos. Jovens e universitárias que estudam Direito, Biologia, Jornalismo e Medicina e que começam as suas vidas ao lado de quem gostam, com quem querem jantar depois de um dia cansativo de trabalho no hospital. Adolescentes, empenhadas no estudo para os exames nacionais, com dúvidas em relação ao curso a seguir e cujos comentários homofóbicos paternos, após a coragem do desabafo aos pais, entristece e perturba a concentração no estudo. E a noção de que todas estas mulheres são muito mais do que a sua sexualidade. Têm sonhos e gostos, têm hobbies e empregos, têm férias, cócegas e sono. São mulheres absolutamente normais. Como eu. Como tu. E conhecê-las, conversar com algumas delas, sobre o tema e sobre tudo o resto, criar amizades novas, trouxe uma força e alívio tão importantes. Sou normal. Sou mais do que aqui escrevo nesta carta. Vou ser escritora e pedopsiquiatra, gosto de caracóis e de dançar, choro a rir com facilidade e não gosto de piadas ordinárias. Sou eu e tenho orgulho em mim.

E foi para poder terminar desta forma esta carta que demorei tanto tempo para te contar. Precisei de arrumar tudo isto na minha cabeça para que soubesse com que palavras to dizer. Não são perfeitas, mas são sinceras. Isto é uma história feliz, de alguém que se descobriu, que se aceitou, que ama e é amada. Espero que te juntes a esta história. Não quero deixar de a partilhar contigo.

Orquídea

6 comentários:

Flor(es) do Reggae disse...

Acho que nunca tinha lido nada com que me tivesse identificado tanto, obrigada *

Beijinho, T.

Marisa disse...

Esta carta é muito importante. És exemplo, Orquídea. Obrigada.

um quarto para duas disse...

Estou sem palavras. Identifico-me imenso com tudo o que está escrito. Parabens

cegonhagarajau disse...

Grande Mulher!
Feliz por ti, por vós.
Embora "desconhecidas", orgulhosa de ti, da tua frontalidade.
Agradecida por conseguires por em palavras o que muitas têm como nó na garganta, sem conseguir exteriorizar.
Abraço grande!

Filipa disse...

adorei...tmb axo k é bom termos opinioes de outras pessoas para nos ajudar no camino. é bom ler-vos. é sinal quenao sou normal, mas tmb nao sou anormal. :)

beijinho as duas

Ana disse...

Olá,

Já por duas x reli a tua carta. Reli-a por não a considerar uma carta qualquer. É um texto que sabe bem ler, porque na 1ª Pessoa. Por falar de ti, dos teus/vossos sentimentos, da tua vivência do "diferente", mas onde te encontraste, tem para mim, um sentimento de enorme ternura.

Bem hajam, Orquídea e Papoila.
beijinhos,
ES