Nessa altura o meu tio trazia-me mochilinhas em forma de koala. Fazia-me groselha com mais concentrado que água. Convencia o meu pai a levar-nos ao banho no ribeiro. Deixava-nos ficar no sofá até às tantas da manhã, a comer as amoras que apanhávamos na serra e a ver programas que não eram para a nossa idade. Nessa altura o meu tio era um herói. Combatera no Ultramar, vira amigos a morrer e veio de lá com stress pós-traumático. Depois foi para Lisboa e, as suas fotos nos álbuns de família, mostram um jovem com personalidade. Um quase modelo dos anos 70, de camisas riscadas e sapatos polidos, que posa para as fotos com um estilo peculiar e atractivo. Foi um segundo pai para os seus 5 irmãos mais novos... e, não fosse ele, nem tudo teria sido fácil.
Depois cresci. Estudei e entrei em Medicina. Vi coisas que me foram moldando e que, sem eu querer, criaram uma barreira entre a emoção e a objectividade - esta barreira protege a minha fragilidade e susceptibilidade. Permite-me conviver de perto com coisas horríveis sem que isso me vá carcomendo. Agora, depois disto, sei que nada é certo. Que nada é para todo o sempre. Agora compreendo a insustentável leveza do ser.
Perguntaram-me se era grave. Perguntaram-me qual era a esperança média de vida. Como eram os procedimentos. O que se seguia. Eu fui respondendo e, enquanto as minhas respostas iam destruindo quem as ouvia, a minha barreira não se baixou. Eu, objectiva, ia dando dizendo o que ninguém queria ouvir. Disse também, como que a querer desculpar-me, que todos os casos são únicos. Que pode não ser bem assim. Que ele é um homem forte. Que os médicos farão tudo o que está ao seu alcance. ... ... Mas sem acreditar, em plenitude, nisso.
Sinto-me culpada. Talvez devesse ter ficado pelo "acho que devem ir vê-lo o mais rapidamente possível".
Espero que a minha avó não veja outro filho morrer.
Que eu não saiba nada de medicina... e que tudo corra ao contrário.
Papoila
5 comentários:
Não te sintas culpada. Já estive do outro lado, escutando essas mesmas palavras que disseste, e no meio de tudo o que não se sabe como vai ser são essas palavras, é essa postura, que nos mantém com os pés assentes na terra... prontos. Nunca preparados... mas prontos.
Isso faz toda a diferença.
Força.
Força.
Beijinhos.
Muita força para todos vocês!
Abraço nosso,
T.S.
Força!! beijinhos
É complicado... o deixar de existir é um fato inexorável e difícil pra todos nós...e pra nós que entendemos um pouco dessa passagem, ou melhor, do momento objetivo dessa passagem, fica ainda mais difícil. Ora mostramo-nos impávidas como rotineiramente somos ensinadas a aparentar, ora conflitamo-nos com as fragilidades que nos são inerentes.
Força!
Enviar um comentário