quinta-feira, 9 de abril de 2009

Singularidades de um dia de praia

Do marisqueiro muito ficou.

Olhou-me com uma devoção tremenda, como se sobre mim pesasse a soberania da praia. Como se um dia, num acesso de raiva por esquecimento do culto, lhe destinasse o barco à tempestade. Àqueles tufões do antigamente. Dos monstros e bichos carniceiros do mundo do muito para lá do mar que os olhos alcançam. Como se fosse eu a ditadora dos destinos do areal. Vi-lhe a submissão e a vassalagem, pouco merecida, ao meu corpo jovem e tosco. A reverência do olhar desviado, num misto de vergonha e respeito. As palavras cuidadas e muito prudentes.

Não sei que lhe despertou tanta submissão. Talvez fosse a máquina fotográfica, grande e pesada, que compunha o meu peito (pendurada pelo pescoço). Fitou-a de olhos abertos e encarou-a como a coroa real, como bastão supremo de Tethys, deusa grega do mar, filha de Gaia e de Uranus, mãe das Naiades e das Oceânides. Uma peça ornamental de um ouro moderno, cinzento e pesado, que o povo do mar não seria digno de fitar tão frontalmente.

Curvei-me e flecti as pernas, deixando-me ao nível do homem. Encarei-o de frente. Que expressão modesta, pensei. Pele encolhida por sol e mar, numa mistura agreste dos anos e dos infrutíferos cuidados.

Perguntei-lhe sobre a sua arte. Durante a descrição acanhada, senti-lhe o sabor a praia na ponta da língua. Vi-lhe os olhos molhados, que julguei serem do sol do meio-dia ou da humidade salgada que se erguia do mar.

Há mais nos Homens do que aquilo que julgamos ver. E eu vejo muito pouco.

Papoila

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